Há 50 anos, concurso elegia rainha das praias do Rio Taquari

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Há 50 anos, concurso elegia rainha das praias do Rio Taquari

Quando o rio ainda tinha praia, evento reunia cinco mil pessoas às margens do rio

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Há 50 anos, concurso elegia rainha das praias do Rio Taquari
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A Praia do Cascalho, em Estrela, deixou de existir há mais de 40 anos. Com uma área maior que o complexo da Polar, ela foi engolida pelas águas do Rio Taquari, ficando completamente submersa. Ali, em 1968, a rádio Alto Taquari ZYN-9 promoveu um grande evento. A primeira edição do concurso Rainha das Praias do Taquari escolheu como soberana Maria Ignêz Vogt, candidata que representava a Praia da Figueira, em Cruzeiro do Sul.
O evento era uma espécie de balão de ensaio, criado pelo gerente da rádio, Waldir Sudbrack. Naquela época, as praias eram o principal ponto de encontro no verão. Aos fins de semana, ficavam lotadas de gente que ia se banhar, fazer churrasco, namorar ou apenas aproveitar uma sombra e água fresca do Taquari.
 
Já no primeiro ano, o evento tornou-se um sucesso de público e mídia. Na segunda edição, os jornais anunciavam “o mais empolgante certame da beleza da região”. As edições chegavam a reunir cerca de cinco mil pessoas, de acordo com estimativas da rádio.
Vinham candidatas de 21 municípios situados às margens do rio. Cada praia trazia sua representante e uma torcida. As jovens moças da região desejavam o prêmio, que dava um status de celebridade. Os rapazes, por sua vez, desejavam as musas soberanas das praias.
Em 1972, o concurso passou a integrar o calendário oficial de eventos do estado. Logo, despertou o interesse da imprensa da capital. Sudbrack lotava seu Opala com as soberanas das praias e ia a Porto Alegre dar entrevista na TV Piratini e na Difusora. Era o Vale do Taquari roubando a cena em nível estadual.

Vencedoras do concurso tinham status de celebridade na região. A primeira rainha, Neca, é reconhecida nas ruas até hoje

Vencedoras do concurso tinham status de celebridade na região. A primeira rainha, Neca, é reconhecida nas ruas até hoje


Com o tempo, os prêmios também evoluíram. A primeira rainha foi presenteada com dez dias de hospedagem em Camboriú, Santa Catarina. Na última edição, em 1975, o prêmio foi um Volkswagen Fusca 1600 zero quilômetro. Os desfiles ocorreram no estádio Aloysio Valentim Schwertner, antigo campo do Estrela Futebol Clube.
 
Em 1976, foi construída a barragem de Bom Retiro do Sul. Para viabilizar um porto em Estrela, era necessário aumentar a profundidade do rio e torná-lo navegável. O nível das águas subiu cerca de três metros. Era o fim das praias do Rio Taquari. Era o fim do concurso.
 

A primeira rainha do Taquari

Na Praia do Cascalho, em 1968, uma pinguela foi construída sobre as águas do Rio Taquari, ligando a praia a uma ilhota localizada perto da margem. Foi por ali que as candidatas desfilaram naquele 25 de fevereiro. Mais de 5 mil pessoas viajaram até o município de Estrela para prestigiar o evento.
 
Os tempos eram outros, os cuidados com a beleza, também. Muitas candidatas chegaram aos camarins, armados junto ao rio, com grampos e toucas no cabelo. Embora não existisse chapinha, era moda alisar as madeixas. Também era costume bronzear a pele antes do concurso. Para isso, produtos naturais que imitavam bronzeadores auxiliavam o processo.
 
Além do camarim, o evento contava com uma mesa improvisada sobre os cascalhos com apenas um guarda-sol, onde ficava a comissão julgadora. Naquele ano, Maria Ignêz Vogt, hoje com 69 anos, recebeu o título de rainha.
 
O aposentado Arno Rakowsky, 67, tinha 16 anos quando viu o concurso. Embora torcesse por outra candidata, ele reconhece o mérito da vencedora. “Ela era a mais bonita”, conta. Neca, como é conhecida desde criança, é natural de Cruzeiro do Sul. Pouco antes de completar 18 anos, foi convidada por Waldir Sudbrack para participar da primeira edição do concurso de beleza. Como era tímida, teve que ser convencida pela mãe. “Ela foi minha grande incentivadora”, lembra.

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Além de levar a representação do município, Neca foi acompanhada de uma grande torcida. Ela foi apresentada à comunidade em um baile. Como o pai morreu quando ela ainda tinha 6 anos, o irmão a protegia como filha. “Ele ficava me observando de canto, só para ver o que eu faria nos eventos e desfiles. Me sentia muito segura”, agradece.
 
Na época, ela estudava no Colégio Santo Antônio, em Estrela, dirigido por irmãs. Não era autorizado que as alunas participassem de concursos como este. Para poder desfilar, Neca teve que convencer as professoras. “Como eu era boa aluna e de família boa, abriram uma exceção”, relembra.
 
Naquele ano, as candidatas combinaram de desfilar de pés descalços. A vestimenta era maiô e a beleza era natural. “Não fazíamos cirurgias para esconder as imperfeições como hoje”, ressalta.
 
Depois que o desfile acabava, as candidatas se dirigiam à cabana “Riso do Sapo”, um barzinho mantido por Sudbrack. Elas passavam por uma área isolada acompanhadas pela Brigada Militar.
 
Como o concurso era perto do carnaval, ela foi convidada para participar da tradicional festa no município de Taquari. Lá, desfilou em um carro alegórico, no meio da festividade.
 
Dessa experiência, Neca leva mais do que uma faixa e boas lembranças. “Participei principalmente pelo valor cultural que o concurso tinha”, explica. Ela ainda cultiva boas amizades que criou naquele tempo, além de um reconhecimento que ultrapassa a beleza. Mais tarde, tornou-se secretária de Turismo de Cruzeiro do Sul. Recebeu convites para participar de outros concursos de beleza, dos quais aceitou apenas o de Miss RS, em 1971.
 
É casada, tem três filhos e quatro netos. Nas horas vagas, também procurar se dedicar à pintura. Mais de 50 anos depois de ter recebido o título de Rainha das Praias do Taquari, ainda é reconhecida nas ruas. “O que fica é uma lacuna no turismo regional. Uma pena o concurso ter acabado”, lamenta.
 

Equipe de um homem só

A ideia de criar o evento partiu de Waldir Sudbrack. Na época, ele era gerente da rádio Alto Taquari, principal veículo de comunicação da região. No verão, as praias do Taquari lotavam de gente. Quase todos municípios, de Muçum a Triunfo, tinham praias na beira do rio.  “Eu pensei em fazer alguma coisa para mexer com este pessoal. Criei o concurso. Era um balão de ensaio, mas deu tão certo que a coisa evoluiu”, lembra.

Waldir Sudbrack foi gerente da rádio Alto Taquari por 18 anos e criou o concurso. Equipe de um homem só, ele produziu sete edições do evento entre 1968 e 1975. Organização dava trabalho ao longo do ano inteiro.

Waldir Sudbrack foi gerente da rádio Alto Taquari por 18 anos e criou o concurso. Equipe de um homem só, ele produziu sete edições do evento entre 1968 e 1975. Organização dava trabalho ao longo do ano inteiro.


O Rainha das Praias nasceu em 1968, sem grandes pretensões. No ano seguinte, o evento foi em Cruzeiro do Sul, na Praia da Figueira. Sudbrack afirma que o evento não dava lucro, mas demandava bastante trabalho, que revertia em visibilidade para o veículo.
 
“Era um trabalho danado e eu era a equipe. Eu ficava o ano inteiro trabalhando nisso”, afirma. Ele visitava pessoalmente as cidades, convidando prefeitos e mobilizando a organização do evento, em um tempo sem internet e redes sociais e sem o desenvolvimento que hoje tem a região.
 
Em função das enchentes, o evento teve de ser adiado diversas vezes. Em 1971, o desfile estava marcado para Taquari, mas não ocorreu. O regulamento precisou ser adaptado para permitir que o evento fosse feito fora das praias. Em Muçum, em 1974, o desfile foi marcado para o clube da cidade, mas um servidor da prefeitura teve de intervir. “Olha a quantidade de gente, não cabe um terço no clube, vão quebrar tudo.”
 
Assim, a estrutura foi montada de improviso e os desfiles foram na praça. Em Taquari, em janeiro de 1972, o desfile foi na Lagoa Armênia. Com o tempo, a produção do concurso desgastou seu produtor. O desaparecimento das praias serviu como desculpa para o fim de um evento que marcou os verões do Vale do Taquari por oito anos.
 
“Aquilo começou a cansar, mas estava tão embalado que não tinha como parar. No fim, eu usei como desculpa a implantação da barragem de Bom Retiro. As gurias choravam e eu dizia que, se não tinha mais praia, não tinha mais razão de existir o concurso”, afirma.
 
Hoje, aos 79 anos, Sudbrack segue atuando no rádio. “Só vou parar quando morrer”, projeta. Ele mantém dois programas semanais.
 

Carta branca e rainhas no hospital

Triunfo não tinha hotel. Em 1972, o município elegeu sua representante, Denize Ribeiro Athanázio, como soberana. Com isso, ganhou o direito de sediar a edição do ano seguinte. Um dos empecilhos à produção do evento era a parca estrutura dos municípios do Vale para o turismo.
 
Sudbrack ficou um mês na cidade correndo atrás dos detalhes da organização. O prefeito ordenou que fossem reservadas uma sala na sede do governo municipal e a melhor máquina de escrever e pôs à disposição.
 
“Ele precisava viajar e teria que assinar os ofícios convidando os outros prefeitos. Ele entregou os papeis da prefeitura timbrados, carimbados e assinados. Tudo em branco. Eu poderia ter feito uma confissão de dívida, alguma coisa do tipo. Isso demonstra a confiança que eles tinham”, lembra.
 
Sudbrack criou uma comissão de mulheres, encabeçada pela primeira dama, para ajudar na organização do concurso. A produção andou. Mas ainda restava o problema da hospedagem. “Eles arrumaram uma área no hospital de Triunfo, que era grande e tinha pouco movimento. A prefeitura reservou um espaço e as candidatas e as mães ficaram hospedadas ali”, recorda.
 

“Quero minha praia de volta”

 
João André Mallmann assistiu às três edições realizadas em Estrela, em 1968, 70 e 75. Membro do Instituto Histórico Geográfico do Vale do Taquari, ele se dedicou a pesquisar a história do concurso. A ideia surgiu quando a Paróquia Santo Antônio, comandada pelo padre Neimar Schuster, comprou a rádio Alto Taquari.
Na reforma do prédio, foram encontrados materiais antigos. Mesas de som, fitas, fotos e jornais. Informações sobre todas as edições do evento.
 
“Quando começou a reforma, ele perguntou se eu queria dar uma olhada no material”, conta.
As vencedoras representavam a região no Miss RS. Mallmann recorda que saiu de Estrela com a torcida para acompanhar a representante da região, que foi no ginásio Gigantinho, em Porto Alegre.
 
Morador de Estrela, o aposentado Pedro Mendes, 70, lembra do tempo das praias do Taquari. “Era um paraíso. Eu saía do trabalho às 17h e ia pescar no rio”, lembra.
 
Mallmann mantém um saudosismo das praias de sua juventude. A avó morava junto ao “zigue-zague”, um dos acessos ao Cascalho, junto à fábrica da Polar. Com o porto quase totalmente desativado, sem partir um navio desde 2015, ele não vê mais utilidade para a barragem. “Nunca votem em mim para governador porque meu primeiro ato vai ser demolir a barragem. Quero minha praia de volta. Não tem mais sentido o rio estar nesta altura, o porto está morto”, conclui.
 

BIBIANA FALEIRO – bibiana@jornalahora.inf.br

MATHEUS CHAPARINI – matheus@jornalahora.inf.br

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